Insustentável desrespeito ao ser

11 de junho de 2012
Entre maravilhosas passagens do clássico “A Insustentável Leveza do Ser” (1984) de Milan Kundera, alguns pensamentos em sua obra relativos ao ‘pensar animal’ se destacam pela profundidade em destacar aspectos que concedem o que lhes é devido: a individualidade como sujeitos possuidores de uma vida.  Seguem trechos retirados do ultimo capítulo do livro:

“No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. (…) Esse direito nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: “Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas”, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano – eventualmente grelhado no espeto por um habitante da via láctea – Talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais) desculpas à vaca.

(Porém) o homem não era o proprietário mas apenas o gerente do planeta, e um dia teria de prestar contas de sua gestão. Descartes deu o passo decisivo: fez do homem “maître et propriétaire de la nature”. Que seja precisamente ele quem nega de maneira categórica que os animais tenham alma, eis aí uma enorme coincidência. O homem é senhor e proprietário, enquanto o animal, diz Descartes, não passa de um autômato, uma máquina animada, uma machina animata. Quando um animal geme, não é uma queixa, é apenas o ranger de um mecanismo que funciona mal. Quando a roda de uma charrete range, isso não quer dizer que a charrete sofra, mas apenas que ela não está lubrificada. Devemos interpretar da mesma maneira os gemidos dos animais, e é inútil lamentar o destino de um cachorro que é dissecado vivo num laboratório. (…) Ao mesmo tempo, surge para mim uma outra imagem: Nietzsche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo, e um cocheiro espancando-o com um chicote. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lha o pescoço, e sob o olhar do cocheiro, explode em soluços. Isso aconteceu em 1889, e Nietzsche já estava também distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão por Descartes. Sua loucura (portanto seu divórcio da humanidade) começa no instante em que chora sobre o cavalo.”


Na primeira passagem, o combate ao pensamento religioso, quando esse se apodera de interpretações já culturalmente arraigadas e construídas numa base piramidal, a qual o homem está no topo da hierarquia dos seres vivos é colocada em cheque. De fato, se formos considerar a Bíblia como um documento ao qual deveríamos ter por base em discussões filosóficas acerca dos direitos ou da ausência dos mesmos (não descartando de forma alguma a importância dada e usada historicamente aos escritos, mas já atentando ao fato que entre pessoas não crentes em Deus, isso não deve necessariamente fazer alguma diferença), não acharemos nenhuma passagem em que Deus conceda direitos fundamentais de proteção ao homem e desfavoreça os outros seres vivos na sequencia. Na verdade, não acharemos nada sobre ética de direitos, mas somente sobre ética do amor. O amor supremo, o amor divino que tudo pode, mas que não permite de forma alguma exigirmos como um direito. Amor é algo espontâneo, eu não posso  apontar o dedo a alguém e dizer: “Ei, eu tenho o direito de ser amado por você”. Crentes ou não em Deus, não poderemos usar nenhum raciocínio lógico baseado nos escritos bíblicos que nos levem a condenar os animais à uma vida de sofrimento, ou, em outras palavras, tirarmos os direitos fundamentais da vida como bem entendermos.

A construção religiosa e filosófica atravessa séculos e encontra sempre novas interpretações – “O homem é fruto do seu tempo” – Descartes pode parecer ultrapassado para qualquer ser humano que já tenho visto um animal por perto, mas infelizmente ainda hoje deriva de seu pensamento algumas sugestões de que animais não podem ter os mesmos direitos nossos. Essa afirmação é baseada no argumento de que os animais não falam, portanto não seriam conscientes do mundo (Claro, existem várias outras contestações, também insustentáveis, mas não citadas no momento). Tom Regan responde à isso lembrando que a consciência se faz pré verbalmente, não verbalmente. Crianças aprendem valores, nomes e significados por indicações e associações, sem que repitam exatamente da mesma forma. Todos nós passamos por esse processo para desenvolver a fala e  não significa que estávamos insconscientes durante o processo.  Também é válido lembrar que alguns chimpanzés tiveram sucesso em aprender a usar a língua de sinais, mas isso é apenas um detalhe para compor a irrelevância do argumento cartesiano.

“A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar) são as relações com aqueles que estão à nossa mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras.” – M. Kundera